Zé Ramalho
Apresentação do mestre Zé Ramalho em 1992 no antigo "Programa Livre" que ia ao ar pelo canal SBT e era comandado pelo apresentador Serginho Groisman. Na ocasião o mestre cantou a lida música Medo da Chuva do inesquecível Raul Seixas.
Mas a entrevista que segue é recente, do mês de Março de 2011.
ENTREVISTA
iG: - O produtor Marcelo Fróes cita, no encarte da caixa, o grupo The Gentlemen,com o qual você gravou no início da carreira. O que você lembra dessa experiência? Você gravou um álbum com eles na época? Como era?
Zé Ramalho - Toquei durante três anos nessa banda de covers, em João Pessoa, na Paraíba, no final dos anos 60. E não cheguei a participar efetivamente do disco gravado por eles, na Rozemblit em Recife, porque já estava me deslocando para o Rio de Janeiro. Mas foi importante, ali eu desenvolvi, com o líder da banda, Hugo Leão, várias gravações, que eram as primeiras demos, de músicas minhas como “Vila do Sossego” e “Kryptônia”, entre outras.
iG - Na entrevista incluída no DVD, você define a decisão de ir para o Sudeste para fazer música como “uma tragédia para uma família nordestina”. Para você foi um momento de grande conflito?
Zé Ramalho - Quando eu citei “tragédia nordestina” é porque eu estava desistindo, abortando a Faculdade de Medicina, na Universidade Federal da Paraíba. Essa atitude, em plenos anos 70, era realmente uma tragédia, para a visão familiar. Ou seja, eu estava largando uma banca de medicina por algo incerto e sem segurança nenhuma, em relação à livre concorrência selvagem, que seria experienciada por mim, quando vim para o “Sul Maravilha”.
iG - Na mesma entrevista, você relata ter dormido na praia e em bancos de praça no Rio de Janeiro, uma história que é compartilhada por outros artistas que migraram para o Sudeste, como, por exemplo, Belchior e Odair José. O que significa essa experiência para um artista? E para um cidadão?
Zé Ramalho - É muito ruim, muito desconfortável e muito perigoso também. Você fica exposto a todos os perigos que o cercam numa cidade como Rio de Janeiro ou são Paulo. Já que você citou Belchior, vou citar uma das suas frases, na música “Apenas um Rapaz Latino-Americano”: “Sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior”. Isso diz tudo: a falta de padrinhos ou contatos que facilitassem a entrada em gravadoras, programas de TV ou rádio. Eram inexistentes. Lutamospara sobreviver, na edição diária de estar limpo, asseado e a parte mais difícil: comer.
iG - Que relação você mantém hoje com o Nordeste, em termos concretos, mas também quanto aos seus sentimentos?
Zé Ramalho - O Nordeste é a minha base musical, as raízes profundas que percebi e absorvi, e é o meu encanto por ser a minha origem. O orgulho e o amor que tenho pelo meu Estado e a minha região são mantidos até hoje, com todo o fervor e o respeito que merece essa combinação de fontes de diversas formas de arte e comportamento.
iG - É frequente rotularem você, dentro da MPB, como um compositor de músicas “místicas”. Você aprecia esse rótulo? Ele faz sentido?
Zé Ramalho - Isso é porque o meu primeiro disco veio carregado desses conceitos literários e artísticos. A música “Avôhai”, por exemplo, está cheia de misticismo, que é uma coisa ligada ao espírito e a viagens mentais e estados de contemplação. Nunca me incomodei com esse adjetivo, porque faz parte da minha formação literária, os livros que li na adolescência, e a estranha ligação e atração que tenho por essa dimensão.
iG - Em que medida esse "misticismo" se relaciona também com psicodelia e experiências com drogas?
Zé Ramalho - Está tudo ligado. A experiência com drogas durante os anos 70 foi importante também para essa iluminação de algumas partes da mente, que são pouco visitadas por nós mesmos. A junção dessas experiências com música, livros, peças de teatro, quadros, tudo junto permitiu voos profundos no grande abismo da criatividade.
iG - Uma das grandes novidades da “Caixa de Pandora” é resgatar do ineditismo as canções de Raul Seixas cujo lançamento não havia sido autorizado em 2001. Como foi possível a publicação, e que sentimento lhe provoca o surgimento delas?
Zé Ramalho - Antes tarde do que nunca! Essas músicas do Raul, que aparecem num formato de pré-produção, somente com voz e violão, trazem uma intimidade com esse grande artista que não foi totalmente exposta no disco de 2001. Não significa que o parceiro que não autorizou as regravações seja perdoado ou mesmo que fique menos “sujo”, pois o que aconteceu na época foi uma sacanagem. Porém, é um grande presente para os fãs, meus e do Raul. Porque é notória a grande aproximação entre os dois trabalhos e principalmente o carinho e admiração que eu tinha por ele.
iG - Qual é a história por trás da versão de Lou Reed incluída na caixa? Essa música saiu originalmente no disco dele com John Cale, em homenagem a Andy Warhol, que havia acabado de morrer. Qual é sua relação com essas figuras?
Zé Ramalho - Bem, um dos diretores executivos da gravadora CBS, no início dos anos 90, tinha escutado esse álbum e quando ouviu “Nobody But You” imediatamente me ligou e expôs a sua ideia de me pedir para fazer uma versão dessa música. A voz de Lou Reed, também grave, o levou a se lembrar da minha voz. Como gosto de desafios, resolvi fazer a versão, que deveria ter entrado no disco “Frevoador”, de 1992. Na época, foi recusada com a justificativa de que o Lou Reed não tinha gostado da versão, apesar do parceiro John Cale ter liberado a sua parte. E foi assim, guardei no meu arquivo pessoal, não só essa versão, que já faz quase 20 anos, como também as músicas do Raul e muitas outras que ainda tenho guardadas e que ainda poderão virar mais um box. Por isso é que dei o titulo de “Caixa de Pandora”, porque ela está revelando, ao ser aberta, todas essas proibições e não-autorizações acontecidas durante todo esse tempo.
iG - Gostaria de perguntar sobre Bob Dylan, apesar de o disco com músicas dele não fazer parte do repertório da "Caixa de Pandora". Esse foi um projeto bastante bem-sucedido, não? Ele tornou mais nítidos e perceptíveis seus laços com a obra "folk-rock" de Dylan?
Zé Ramalho - Isso é você quem deveria me dizer, porque você conhece ambos os trabalhos. Contudo, era um projeto que eu tinha que realizar, pois foi amadurecido durante décadas e realizado no momento certo. Ao contrário das músicas proibidas e não-autorizadas dessa caixa, o Dylan, como autor, liberou, sem nenhuma observação, todas as versões do disco. Isso já é o bastante para realizar um trabalho dessa magnitude.
iG - Você trabalha atualmente em algum novo projeto? Pode contar alguma coisa?
Zé Ramalho - Atualmente, continuo realizando discos da série “Zé Ramalho Canta…”, da qual já saíram “Zé Ramalho Canta Raul Seixas”, “Zé Ramalho Canta Bob Dylan”, “Zé Ramalho Canta Luiz Gonzaga” e “Zé Ramalho Canta Jackson do Pandeiro”. Nessa “Caixa de Pandora”, um dos discos é “Zé Ramalho Canta MPB”. Provavelmente neste ano ainda deverá sair o “Zé Ramalho Canta Beatles”, em inglês. Também tenho um pacote de canções autorais só minhas, sem parceiros, que já estou trabalhando e amadurecendo para ser lançado em breve tempo.
Extraído do blog Acervo Zé Ramalho da Paraíba por Pedro Alexandre Sanches, repórter especial ir Cultura 17/03/2011
Avohai
Composição : Zé Ramalho
Um velho cruza a soleira
De botas longas, de barbas longas
De ouro o brilho do seu colar
Na laje fria onde quarava
Sua camisa e seu alforje
De caçador...
Oh! Meu velho e Invisível
Avohai!
Oh! Meu velho e Indivisível
Avohai!
Neblina turva e brilhante
Em meu cérebro coágulos de sol
Amanita matutina
E que transparente cortina
Ao meu redor...
E se eu disser
Que é meio sabido
Você diz que é bem pior
E pior do que planeta
Quando perde o girassol...
É o terço de brilhante
Nos dedos de minha avó
E nunca mais eu tive medo
Da porteira
Nem também da companheira
Que nunca dormia só...
Avôhai!
Avô e Pai
Avôhai!
O brejo cruza a poeira
De fato existe
Um tom mais leve
Na palidez desse pessoal
Pares de olhos tão profundos
Que amargam as pessoas
Que fitar...
Mas que devem sua vida
Sua alma na altura que mandar
São os olhos, são as asas
Cabelos de Avôhai...
Na pedra de turmalina
E no terreiro da usina
Eu me criei
Voava de madrugada
E na cratera condenada
Eu me calei
Se eu calei foi de tristeza
Você cala por calar
E calado vai ficando
Só fala quando eu mandar...
Rebuscando a consciência
Com medo de viajar
Até o meio da cabeça do cometa
Girando na carrapeta
No jogo de improvisar
Entrecortando
Eu sigo dentro a linha reta
Eu tenho a palavra certa
Pra doutor não reclamar...
Avôhai! Avohai!
Avôhai! Avhai!
De botas longas, de barbas longas
De ouro o brilho do seu colar
Na laje fria onde quarava
Sua camisa e seu alforje
De caçador...
Oh! Meu velho e Invisível
Avohai!
Oh! Meu velho e Indivisível
Avohai!
Neblina turva e brilhante
Em meu cérebro coágulos de sol
Amanita matutina
E que transparente cortina
Ao meu redor...
E se eu disser
Que é meio sabido
Você diz que é bem pior
E pior do que planeta
Quando perde o girassol...
É o terço de brilhante
Nos dedos de minha avó
E nunca mais eu tive medo
Da porteira
Nem também da companheira
Que nunca dormia só...
Avôhai!
Avô e Pai
Avôhai!
O brejo cruza a poeira
De fato existe
Um tom mais leve
Na palidez desse pessoal
Pares de olhos tão profundos
Que amargam as pessoas
Que fitar...
Mas que devem sua vida
Sua alma na altura que mandar
São os olhos, são as asas
Cabelos de Avôhai...
Na pedra de turmalina
E no terreiro da usina
Eu me criei
Voava de madrugada
E na cratera condenada
Eu me calei
Se eu calei foi de tristeza
Você cala por calar
E calado vai ficando
Só fala quando eu mandar...
Rebuscando a consciência
Com medo de viajar
Até o meio da cabeça do cometa
Girando na carrapeta
No jogo de improvisar
Entrecortando
Eu sigo dentro a linha reta
Eu tenho a palavra certa
Pra doutor não reclamar...
Avôhai! Avohai!
Avôhai! Avhai!
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